A ÉTICA PREMEIA O ESTADO CONSTITUCIONAL
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domingo, 31 de agosto de 2025
O conceito de “vida boa”, que não é o mesmo de “boa vida”, tem sido abordado noutros contextos, nomeadamente quando se analisa o comunitarismo na perspectiva do perfeccionismo marxista, na medida em que impede que as pessoas realizem aquilo que consideram uma má escolha, no sentido de desempenhar um trabalho alienante.
Com efeito, diz-nos um autor consagrado: «Afirmei que esta política não resulta aceitável porquanto se baseia numa concepção demasiado estreita do bom. Identifica o nosso bem como uma única actividade - o trabalho produtivo - porquanto só esta actividade é distintamente humana. Mas nem toda a política paternalista ou perfeccionista se fundamenta numa concepção tão inadmissível da vida boa.» (KYMLICKA, 1995:221).
Voltaremos mais à frente a esta questão, antes, porém, reflitamos sobre a posição de HABERMAS, a fim de vermos até que ponto a ética permeia o Estado Constitucional. Na verdade, e segundo este autor: «Do ponto de vista da teoria legal, a questão inicial que o multiculturalismo levanta é a questão da neutralidade ética da lei e da política. Por ética quero dizer todas as questões relacionadas com as concepções de vida boa, ou uma vida que não é esbanjada. As questões éticas não podem ser analisadas do ponto de vista moral se algo é igualmente bom para todos. (...) O julgamento imparcial de semelhantes questões é baseado em fortes avaliações e determinado pelo auto-entendimento e pelos projectos de vida de grupos específicos, isto é, pelo que é, do seu ponto de vista, bom para nós, consideradas todas as coisas.» (in: TAYLOR, 1998:140).
Para os liberais, a questão coloca-se, desde logo, com as implicações que uma autodeterminação pressupõe, ou seja: «A auto-determinação implica decidir o que fazer com as nossas vidas? Como tomamos tais decisões? Num sentido muito geral o nosso objectivo é levar por diante uma vida boa, ter aquelas coisas que se conformam com uma vida boa. (...). Isto tem consequências importantes, (...) porque levar adiante uma vida boa é diferente de levar adiante uma vida que atualmente cremos que é boa. (...). A inquietude a partir da qual realizamos estes juízos, em certos momentos da nossa vida só têm sentido se se aceita o pressuposto que o nosso interesse essencial é o de viver uma vida boa e não a vida que atualmente cremos que é boa. (...). A ideia de que certas coisas valem a pena e outras não, cala bem fundo no nosso entendimento.» (KYMLICKA, 1995:222-23).
Habermas trás à colação, no que respeita à relação com a identidade com um grupo, a discussão constitucional canadiana, para ver até que ponto se verifica a exigência liberal da neutralidade ética da lei, relativamente ao auto-entendimento ético-político de uma nação de cidadãos, no sentido em que a neutralidade da lei e do processo democrático de decretar leis, pretendem manter fora dos programas e discussões as questões políticas de natureza ética, o que vai no sentido do liberalismo 1, implicando que ao Estado não deve ser permitido adoptar objetivos coletivos, com exceção da garantia da liberdade pessoal, o bem-estar e a segurança dos cidadãos.
Alternativamente, ou seja, no sentido do liberalismo 2: «... ao contrário, espera que o estado garanta estes direitos fundamentais em geral, mas que além disso intervenha também em nome da sobrevivência e do avanço de uma nação, cultura, religião específicas ou um grupo (limitado) de nações, culturas e religiões (...). Os conflitos entre estas duas orientações normativas fundamentais são bastante possíveis e que em muitos casos apenas o liberalismo 2., permite dar precedência aos objectivos e identidades colectivos.
De facto, a teoria dos direitos defende a absoluta precedência dos direitos sob os bens colectivos de modo que os argumentos sobre os objectivos, como Dworkin mostra, possam apenas triunfar em reivindicações baseadas nos direitos individuais, se estes objectivos poderem, por seu turno, ser justificados à luz de outros direitos que têm precedência.» (in: TAYLOR, 1998:141).
Não podemos ignorar a importância que a elaboração democrática, de um sistema de direitos, tem para as minorias na incorporação de objetivos gerais e coletivos, que são confirmados nas lutas pelo reconhecimento, na medida em que se as normas morais regulam interações entre os sujeitos de ação, as normas legais, por sua vez, resultam das decisões de um corpo local de elaboração de leis, que se aplicam numa determinada área geográfica, e a uma comunidade de indivíduos do Estado, socialmente delimitada, não sendo permitido aos objetivos coletivos dissolverem a estrutura da lei, além de que o processo de estabelecer disposições normativas, para modos de comportamento, está aberto a influências através dos objetivos políticos da sociedade e, por isso, todo o sistema legal é a expressão de uma forma de vida específica, e não apenas a reflexão da satisfação universal dos direitos básicos.
Se por um lado, Habermas nos transmite a ideia de que: «O processo de actualização de direitos está de facto embutido em contextos que exigem semelhantes discursos como uma componente importante da política - discussões sobre uma concepção partilhada de bem e uma forma de vida desejada que se reconhece como autêntica. Em tais discussões os participantes clarificam o modo como eles se encaram como cidadãos de uma república específica, como herdeiros de uma cultura específica, quais as tradições que querem perpetuar, e quais querem suspender, como querem lidar com a sua história, uns com os outros, com a natureza...» (in: TAYLOR, 1998:143).
Por outro lado, Kymlicka, dá-nos para reflexão a seguinte passagem: «O nosso bem não é universal nem único senão enquanto se adequa, em boa medida, às práticas culturais que partilhamos com outros dentro da mesma comunidade. Compartilhando o suficiente com os outros que estão à nossa volta e com o governo perfeccionista, chegamos a um razoável conjunto de crenças acerca do que é bom para os cidadãos. (...)
A minha vida desenvolve-se adequadamente na medida em que a dirijo de acordo com as minhas crenças sobre o que é valioso. (...). Então teremos duas condições para a satisfação do nosso primordial interesse em levar por diante uma vida boa: Uma, é que dirijamos a nossa vida a partir das nossas próprias convicções; Outra, é que sejamos livres de questionar tais carências à luz de qualquer informação, exemplos e argumentos que nos oferece a nossa cultura.
Portanto, as pessoas devem ter os recursos e liberdades necessários para dirigir as suas vidas de acordo com as suas crenças, sobre o que é valioso, sem que as sancione ou prejudique por praticar cultos religiosos ou actos sexuais contrários à convenção, etc. Daí a tradicional preocupação liberal pela comunicação, pela liberdade de expressão, liberdade de imprensa, liberdade no âmbito da arte, etc. Estas liberdades capacitam-nos para julgar o que resulta valioso na nossa vida, na única maneira em que podemos julgar tais coisas, analisando diferentes aspectos da nossa herança cultural compartilhada.» (KYMLICKA, 1995:224-25).
Das análises elaboradas por Habermas, e Kymlicka, não será difícil admitirmos que, na base dos conceitos compartilhados de “vida boa”, desenvolvidos por aqueles autores, poderemos encontrar a chave para o problema do reconhecimento, num dado momento, na história de uma comunidade e digo num dado momento porque, a partir da consumação ética, legal e política do reconhecimento, uma outra situação de começo de novas lutas pode ocorrer, aliás, é isso mesmo que me parece correto interpretar, no seguinte passo de Habermas:
«Como a história da formação dos Estados mostra, os novos limites nacionais dão origem a novas minorias nacionais. O problema não desaparece, exceto ao preço de «lavagens étnicas», um preço que não se justifica política e moralmente. A natureza dos dois gumes do direito à autodeterminação nacional é claramente demonstrada no caso dos curdos que estão espalhados por três países diferentes, ou no caso da Bósnia-Herzegovina, onde os grupos étnicos lutam uns contra os outros sem misericórdia. Por um lado, uma colectividade que pensa em si própria como uma comunidade com a sua própria identidade atinge um novo nível de reconhecimento ao dar o passo para se tornar numa nação no seu próprio direito. Não pode atingir esse nível enquanto comunidade étnica e pré-política linguisticamente, ou mesmo enquanto uma «nação cultural» incorporada ou fragmentada. A necessidade de reconhecimento intensifica-se em tempos de crise (...) por um lado, a independência social obtém-se muitas vezes ao preço de guerras civis, novos tipos de repreensão, ou problemas resultantes que perpetuam os conflitos iniciais com os sinais revertidos.» (in: TAYLOR, 1998:144-45).
Nos últimos anos há quem venha defendendo a criação dos Estados Unidos da Europa, num regime federalista; também se tem defendido, em vários quadrantes político-ideológicos, a nível nacional, a regionalização do país. Vários argumentos a favor e contra têm sido utilizados e, no que respeita a Portugal, o referendo realizado a propósito da regionalização, produziu um resultado inequívoco, no sentido da recusa de tal divisão do País. Quanto à criação de uma Europa federada, igualmente existe quem a defenda e também quem a rejeite, faltando a este propósito consultar os povos das nações constituintes da União Europeia.
Segundo Habermas: «A federalização é uma solução possível apenas quando os membros dos grupos étnicos e mundos culturais diferentes vivem em áreas geográficas mais ou menos separadas. Em sociedades multiculturais como os EUA não é esse o caso. Nem será em países como na Alemanha, onde a composição étnica está a mudar sob a pressão de ondas de imigração globais. Mesmo que o Québec se tornasse culturalmente autónomo, deparar-se-ia com a mesma situação, tendo apenas trocado uma cultura inglesa maioritária por uma francesa.» (in: TAYLOR, 1998:145).
É assim que se estende a garantia de direitos de coexistência iguais para os diferentes grupos étnicos, e para as suas formas de vida cultural, desde que a esfera pública abra as estruturas de comunicação, promovendo discussões orientadas para o auto-entendimento que se possa implementar nas sociedades multiculturais, contra o acumular de conhecimentos da cultura liberal, e à base de associações voluntárias.
Mas aqui, talvez se possam colocar algumas questões pertinentes, designadamente: «Será que existe, por exemplo, uma genuína cultura comum, seja na América, na Inglaterra, no Québec, na Alemanha, em Portugal, ou pelo contrário, não estaremos nós a trabalhar sob o efeito de uma idealização hegemónica que transcende, afinal, a cultura e a perspectiva do homem branco, opressor, ao longo do tempo e ao longo do espaço, de outros grupos e, também, não será que cada vez mais se torna premente que a História, tradições culturais e acordos sociais sejam revistos, por tais razões e de forma a reflectir as diferentes contribuições e expectativas dos grupos marginalizados?
Utiliza-se a regra da maioria, para delimitar as minorias! Será tal regra justa? A regra da maioria não será antes a expressão política de hegemonia da cultura comum e por esta via, os multiculturalistas não estarão a cometer um erro quando redefinem a democracia de um modo não maioritário, como uma divisão do poder entre os diferentes grupos culturais?
Terão razão os multiculturalistas quando pretendem que as eleições sejam efectuadas de acordo com regras multiculturais, para evitar que a maioria não tente introduzir com êxito, através da urna de voto, as suas preferências aos outros grupos ditos minoritários?» (O’SULLIVAN, 2000:54).
Mas retornando a Habermas, ele desenvolve o seu pensamento acerca deste ponto, defendendo que: «A identidade do indivíduo está entrelaçada com as identidades colectivas e pode ser estabelecida apenas numa rede cultural que não pode ser apropriada enquanto propriedade privada mais do que a língua mãe. (...). Em sua defesa, culturas indígenas em perigo avançaram razões morais especiais que surgem da história de um país que foi apropriado pela cultura maioritária. Argumentos semelhantes a favor da discriminação contrária podem ser avançados para as culturas reprimidas e desaprovadas dos primeiros escravos.» (in: TAYLOR, 1998:146).
A salvaguarda da coexistência dos direitos iguais, para diferentes grupos étnicos, e suas formas de vida cultural, não necessita de recorrer a um tipo de direitos coletivos, os quais, por sua vez, afetariam, excessivamente, os direitos individuais, porque no Estado Democrático Constitucional a proteção de forma de vida e de tradições, nas quais são formadas as identidades, e que serviria para o reconhecimento dos seus membros, não representa um perigo para a preservação das espécies, de resto, na perspectiva ecológica, a preservação das espécies não pode ser transferida para as culturas, porque as heranças culturais e as respetivas formas de vida reproduzem-se normalmente.
Invocando uma vez mais Habermas, ele refere que: «Neste ponto ajuda relembrar as muitas subculturas e mundos de vida que florescem na antecipada Europa moderna com a sua estratificação ocupacional, ou as formas de vida dos trabalhadores rurais e as massas urbanas proletarizadas e decineradas da primeira fase da industrialização que os originou. (...) Mesmo uma cultura maioritária que não se considere ameaçada preserva a sua vitalidade apenas através de um revisionismo desenfreado, procurando alternativas para o status quo ou integrando impulsos estranhos - até mesmo ao ponto de quebrar as suas próprias tradições. (...). Nas sociedades multiculturais a coexistência de formas de vida com direitos iguais significa garantir a cada cidadão a oportunidade de crescer dentro do mundo de uma herança cultural e garantirem aos seus filhos crescerem nele sem sofrerem discriminação.» (Ibid.:148-49)
A lealdade à cultura comum é, portanto, assegurada pela integração política dos cidadãos. Na perspectiva histórica da nação, tal cultura terá a sua origem na interpretação que resultar dos princípios constitucionais e, nesta medida, aquela significação não poderá ser neutral, o que se pode conseguir, através dos debates históricos sobre os direitos e princípios constitucionais, os quais constituem o ponto de referência para qualquer patriotismo constitucional, do sistema de direitos de uma comunidade legal, porque eles devem estar ligados às motivações e convicções dos cidadãos e, por tais razões, é que a partilhada cultura política, na qual os cidadãos se reconhecem, é permitida pela ética.
A este propósito, Habermas escreve com a sua autoridade:
«... a substância ética de um patriotismo constitucional não pode prejudicar a neutralidade do sistema legal vis-à-vis comunidades que estão eticamente integradas num nível subpolítico. (...). A neutralidade da lei vis-à-vis diferenciações éticas tem origem no facto de que nas sociedades complexas o todo dos cidadãos não mais pode ser sustentado por um consenso real de valores... (...) Os cidadãos que estão politicamente integrados neste sentido partilham a convicção racional que a liberdade de comunicação desenfreada na esfera pública política, um processo democrático para estabelecer conflitos, e o transporte constitucional de poder político fornecem uma base para inspeccionar o poder ilegítimo e assegurar que o poder administrativo é usado no interesse igual de todos.» (Ibid.:151-52).
Bibliografia.
KYMLICKA, Will, (1995). A Filosofia Política Contemporânea. Una Introducción. Tradução, Roberto Gargarela, 1ª edição, Barcelona: Editorial Ariel, S.A.
O`SULLIVAN, John, (2000). “A Próxima Grande Ameaça à Democracia”, in: Revista Nova Cidadania, (4), Primavera 2000
TAYLOR, Charles. (1998). Multiculturalismo, Tradução, Marta Machado. Lisboa: Instituto Piaget.
“NÃO, ao ímpeto das armas; SIM, ao diálogo criativo/construtivo. Caminho para a PAZ”
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Venade/Caminha – Portugal, 2025
Com o protesto da minha permanente GRATIDÃO
Diamantino Lourenço Rodrigues de Bártolo
Presidente HONORÁRIO do Núcleo Académico de Letras e Artes de Portugal
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